- Apresentação do problema
- Soluções e críticas
- Sinopse e decupagem do filme
- Plano de aula
- Avaliação
Apresentação do problema
O problema do mal e O sétimo selo
Professor Sérgio Miranda
Professor Sérgio Miranda
Uma das tarefas principais da filosofia é avaliar a coerência de algumas
das nossas crenças mais fundamentais e as razões que temos para aceitá-las. Sem
dúvida, a crença que muitas pessoas compartilham de que há um Deus completamente
bom, onipotente (todo-poderoso), onisciente e eterno, que nos criou e mantém a
nossa existência, é uma dessas crenças fundamentais. Há um problema filosófico
interessante e difícil relacionado à coerência e racionalidade da crença teísta
conhecido como “o problema do mal”. Esse problema é tema do filme O Sétimo Selo, que narra a história de
um cavaleiro que retorna das Cruzadas, encontrando em sua terra natal um estado
deplorável de sofrimento que desperta uma profunda reflexão sobre as suas
crenças religiosas. Na sequência, apresento o problema do mal, discuto algumas
respostas, mostro como relacionar esse problema com o filme, e ofereço indicações
de leituras, um roteiro de aula e questões para avaliação.
1. O problema do mal
Introdução
A existência do mal em nosso mundo leva a dois problemas distintos, mesmo
que eles sejam relacionados. O primeiro deles surge com a ocorrência de males em
nossas vidas. Todos nós já enfrentamos ou vimos pessoas enfrentarem males como doenças
e dores de diversos tipos e intensidades, injustiças, preconceitos, fome,
miséria, violência, sem contar os sofrimentos causados pelos desastres naturais
como terramotos, enchentes e desabamentos. Esses males podem, por sua vez,
gerar ainda outros males, como os estados de aflição, tormenta e angustia, e até
despertar uma crise religiosa, levando alguém a questionar a sua fé em Deus. Esses
são problemas existenciais que se pode tentar resolver por conta própria com
ações para afastar e superar esses males ou buscando alguma orientação e
conforto espiritual. O segundo tipo de problema surge com a introdução de argumentos
que partem da constatação do mal no mundo para a afirmação de que Deus definitivamente
não existe ou muito provavelmente não existe. Esse problema não pode ser
resolvido praticamente, mas requer teorização, construção e avaliação de
argumentos. É principalmente esse segundo tipo de problema que receberá a nossa
atenção aqui.
No entanto, antes de começar essa discussão, devemos esclarecer alguns
conceitos recorrentes nas discussões filosóficas sobre o mal, além de
estabelecer algumas distinções importantes. Primeiramente, devemos levar em
conta que os argumentos que desencadeiam o problema filosófico do mal partem da
concepção teísta tradicional de Deus como um ser que é onipotente, onisciente, e totalmente bom. Mas o que isso quer
dizer?
Quando se diz que um ser é onipotente,
o que se quer dizer é, normalmente, que esse ser pode tudo. Mas os filósofos
conceberam algumas coisas que não poderiam ser feitas por Deus. De acordo com
Tomás de Aquino, por exemplo, tudo o que se pode fazer pertence ao campo do que
é possível, e a frase “Deus pode fazer tudo” quer dizer propriamente que “Deus
pode fazer tudo o que for possível”, ou melhor, que “Deus pode fazer tudo o que
for logicamente possível”. Isso
porque o “possível” na frase de Tomás de Aquino deve ser entendido como exprimindo
uma possibilidade lógica e não uma possibilidade física. E algo é logicamente
possível se não entrar em conflito com as leis da lógica, particularmente com o
assim chamado “princípio de não contradição”, segundo o qual uma proposição “a
é b” e a sua negação “a não é b” não podem ser igualmente verdadeiras, enquanto
algo é fisicamente possível se não entrar em conflito com as leis das ciências
naturais.
Para entender melhor essa distinção, considere a diferença que haveria entre,
por um lado, criar um triângulo com quatro lados ou um solteiro que fosse casado,
que envolveria criar um triângulo que pela definição de triângulo não é um
triângulo ou criar um solteiro que pela definição de solteiro não é um solteiro,
e, por outro, criar um ser humano verde, capaz de atravessar paredes de
concreto e pular de um edifício de quinze andares sem se machucar, que são
coisas fisicamente impossíveis para nós, mas que não envolvem contradição com o
que é ser um humano. No primeiro caso, diremos que se trata de algo que não é
logicamente possível, pois admitir triângulos quadrados ou solteiros casados
seria admitir as contradições que algo ao mesmo tempo tem e não tem três lados
e que algo ao mesmo tempo é e não é casado; no segundo, que se trata de algo
que não é fisicamente possível, pois humanos com aquelas propriedades de ser
verde, atravessar paredes e pular de edifícios altos contrariam o que sabemos
sobre a anatomia e fisiologia humanas.
Assim, conclui Aquino, a onipotência divina diz respeito ao poder de criar
tudo o que não envolver alguma contradição; e não se deve dizer que Deus não
pode criar coisas logicamente impossíveis, mas sim que essas coisas não podem
ser criadas. (Aquino, ST, I, Q. 25,
art. 3) Portanto, podemos também concluir, Deus poderia ter criado o incrível
Hulk, mas não círculos quadrados ou solteiros casados, porque, afinal, essas
coisas não podem ser criadas.
Quando se diz que um ser é onisciente,
o que se quer dizer é que ele conhece todas as proposições verdadeiras, tanto
aquelas que para nós dizem respeito ao passado, quanto as que para nós dizem
respeito ao presente e ao futuro. É interessante filosoficamente discutir se a
presciência divina, i.e., o conhecimento de Deus acerca do que acontecerá no
futuro, é compatível com a liberdade humana. Porém não trataremos agora desse
tópico, reservando-o para uma ocasião futura. No momento, basta notar que a
onisciência divina não deve excluir a liberdade humana, i.e., o facto de Deus
saber de antemão que uma pessoa praticará uma ação má não quer dizer que ela fatalmente praticará essa ação, mas
acarreta que Deus escolheu não intervir (ou pelo menos não podia intervir)
antes que a ação má fosse praticada.
Quando se diz que um ser é totalmente
bom, o que se quer dizer é que ele é moralmente perfeito, e é impossível
que um ser moralmente perfeito pratique atos maus. Por quê? Para oferecermos
uma boa resposta, precisamos introduzir uma distinção entre propriedades
acidentais e essenciais. Considere as propriedades de ser solteiro e ocupar um
lugar no espaço. Uma pessoa pode instanciar a propriedade de ser solteira, mas deixar de instanciá-la
logo que se casa, sem deixar de ser ela mesma; portanto, ser solteiro não é uma propriedade essencial, mas sim uma
propriedade acidental dessa pessoa. Por outro lado, é impossível que este livro
sobre a mesa deixe de ocupar um lugar no
espaço; portanto, não se pode dizer sem contradição que isto é um livro e
não ocupa um lugar no espaço, porque ocupar um lugar no espaço é uma
propriedade essencial sem a qual o livro não pode existir.
Algumas propriedades divinas como ser
totalmente bom pertencem a essa última categoria, i.e., ser totalmente bom é uma propriedade
essencial de Deus. Além disso, praticar atos maus envolve uma falha de caráter,
e quem os pratica não é moralmente perfeito. Consequentemente, visto que ser totalmente bom quer dizer ser moralmente perfeito, ser totalmente bom é uma das
propriedades essenciais de Deus, e praticar atos maus envolve uma falha de
caráter, não se pode dizer que Deus e pratica atos maus sem cair em
contradição: dizer que Deus pratica atos maus seria dizer ao mesmo tempo que
ele é totalmente bom e que ele não é totalmente bom. (moralmente perfeito).
Mas não dissemos no parágrafo anterior que Deus não impede o mal que os
seres humanos livremente escolhem perpetrar? Se for mau não impedir o mal, a
maldade não deveria fazer parte da natureza de Deus? Esse problema não é tão
grave e é facilmente contornável se acrescentarmos que a natureza bondosa de
Deus é compatível com algum mal, desde que seja justificável para Deus permitir
esse mal (como um pai está justificado, por exemplo, em permitir que o seu
filho seja espetado com uma agulha a fim de imuniza-lo contra certas doenças
contagiosas).
Finalmente, outra distinção importante. Argumentos podem ser ou dedutivos
ou indutivos. Os argumentos dedutivos são caracterizados por meio da noção de validade: um argumento é dedutivamente
válido somente se for impossível que
as suas premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Os argumentos
indutivos podem ser caracterizados em termos de força indutiva: um argumento é
indutivamente forte somente se for improvável
que conclusão seja falsa dada a verdade das premissas. Há paralelamente dois
tipos de problemas para os teístas relacionados à existência do mal no mundo: o
problema lógico e o problema indiciário ou indutivo do mal.
O problema lógico do mal
O argumento lógico do
mal
Um conjunto de proposições é consistente somente se todas elas puderam ser
verdadeiras ao mesmo tempo. Não é o caso, portanto, que todas tenham de ser
efetivamente verdadeiras para formarem um conjunto consistente: {Collor foi presidente; Itamar Franco foi
presidente; Fernando Henrique foi presidente; Lula foi presidente; Sílvio
Santos foi presidente} é um conjunto de proposições consistente, mesmo que a
proposição sobre o Sílvio Santos seja falsa. O que importa para a consistência
é que essa proposição poderia, junto com as demais, ser verdadeira. Assim, para
testar a consistência daquele conjunto, basta imaginar uma situação na qual Sílvio Santos foi presidente fosse,
junto com as demais, uma proposição verdadeira. E isso não parece tão difícil
assim.
Um conjunto é inconsistente somente se não for possível que elas sejam
verdadeiras ao mesmo tempo. Se acrescentarmos ao conjunto anterior a proposição
Collor não foi presidente formamos o
conjunto {Collor foi presidente; Itamar
Franco foi presidente; Fernando Henrique foi presidente; Lula foi presidente; Sílvio
Santos foi presidente; Collor não foi presidente}. Esse conjunto é inconsistente
porque as proposições que o formam não podem ser todas ao mesmo tempo verdadeiras.
E isso acontece porque o conjunto contém as proposições contraditórias Collor foi presidente e Collor não foi presidente que não podem
ser ambas verdadeiras, visto que a verdade de uma implica a falsidade da outra.
O argumento lógico do mal procura estabelecer que algumas proposições
centrais no teísmo formam um conjunto inconsistente. Isso é o que propõe o
filósofo norte-americano J. L. Mackie quando afirma que o argumento do mal
força o teísta a acreditar em algo que pode ser contrariado por outras crenças
que ele também possui. (Mackie, 1955, p. 200) O que o teísta acredita é que (1)
Deus existe e é onipotente, onisciente e totalmente bom e Mackie pensa que esta
crença entra em contradição com outra crença que o teísta também possui, a saber,
que (2) o mal existe. Mas como é que isso
acontece? Por que {(1), (2)} é um conjunto inconsistente?
Mackie sugere o seguinte:
(...) a contradição não
surge imediatamente; para mostra-la precisamos de algumas premissas adicionais,
ou talvez de algumas regras quase lógicas conectando os termos “bem”, “mal” e
“onipotente”. (Mackie, 1955, p. 201)
Para mostrar a contradição entre (1) e (2), temos de introduzir alguma conexão
entre (1) e a negação de (2). É exatamente isso o que fazemos quando dizemos que
uma pessoa cai em contradição ao afirmar que (3) o uniforme da seleção é amarelo e (4) o uniforme da seleção não tem uma cor: a contradição surge porque pressupomos
adicionalmente que (5) o amarelo é uma
cor. Então é óbvio que se o uniforme da seleção é amarelo, ele tem uma cor,
e podemos concluir de (3) e (5) a negação de (4), ou seja, que (6) o uniforme da seleção tem uma cor. Finalmente,
a conjunção de (4) e de (6) é a contradição (7) o uniforme da seleção tem uma cor e não tem uma cor. Talvez a contradição
entre (1) e (2) possa ser tornada explícita se estabelecermos alguma proposição
como (5), que possa funcionar como premissa adicional em um argumento no qual a
conclusão seja a negação de (2).
Em sua reconstrução do argumento lógico do mal contra o teísmo, Plantinga observa
o seguinte: a premissa que buscamos tem de ser logicamente necessária, i.e.,
ela tem de ser uma proposição que não pode ser falsa. Por quê? A explicação não
é fácil. Mas vamos começar com um exemplo simples. Certamente, se alguém disser
que (8) há um gato nesta sala e ao
mesmo tempo que (9) o gato nesta sala não
é preto, essa pessoa não cai em contradição. Contudo, a partir de (8) e (9)
podemos gerar uma contradição se acrescentarmos esta nova proposição: (10) todos os gatos nesta sala são pretos. De
(8) e (10) podemos derivar a negação de (9), ou seja, (11) o gato que está nesta sala é preto, gerando, pois, a contradição (12)
o gato que está nesta sala é preto e ele não
é preto. Porém ninguém dirá que (8) e (9) são contraditórias! E por que o
procedimento que adotamos para gerar uma contradição é bem sucedido no caso das
camisas da seleção mas falha agora no caso do gato preto?
A diferença é que (5) o amarelo é uma
cor é sempre verdadeira (pelo
menos até não mudarmos os significados dos termos “amarelo” e “cor”), enquanto
que (10) todos os gatos nesta sala são
pretos é uma proposição meramente contingente,
visto que ela é verdadeira, porém, claramente, poderia ser falsa. Portanto, se
(5) leva à contradição (7), isso acontece sempre, porque (5) sempre garante a
verdade de (6), mas (10) leva à contradição (12) somente quando for verdadeira,
pois, se for falsa, ela não garante a verdade de (11), não podemos derivar a
contradição (12), e {(8), (9), (10)} é consistente (note que a inconsistência é
a impossibilidade de haver alguma situação na qual as proposições que formam o
conjunto sejam ao mesmo tempo verdadeiras!). Consequentemente, a estratégia
para mostrar que duas proposições são contraditórias porque geram contradições
se acrescentarmos a elas alguma outra funciona somente se a proposição que
acrescentarmos for ela mesma necessariamente verdadeira e, nesse aspecto, similar
àquela proposição, assumida no caso das camisas da seleção, de que o amarelo é
uma cor.
Qual seria a afirmação que junto com (1) acarretaria a negação de (2)? Um
primeiro candidato seria que (13) um ser
onisciente, onipotente e perfeitamente bom, se existir, não permite a
ocorrência qualquer tipo de mal. De (1) e (13) podemos efetivamente derivar
(14) o mal não existe. Contudo, dado
que também aceitamos que (2) o mal existe,
chegamos à contradição (15) o mal existe
e não existe. Mas será (13) uma afirmação logicamente necessária, i.e., será
que ela não poder ser falsa? Claramente, não! Sabemos pela nossa própria
experiência que às vezes o mal é necessário para obtermos algum bem que seja
maior e mais duradouro. Isso acontece, por exemplo, quando vamos ao dentista, ou
abrimos mão de prazeres imediatos como fumar ou tomar bebidas alcoólicas, ou passamos
noites sem dormir na preparação para uma prova importante. Portanto, um ser
onisciente, onipotente e perfeitamente bom pode permitir o mal, desde que esse
mal propicie algum bem maior e duradouro.
É também o caso que algumas virtudes como o perdão e a coragem somente são
possíveis graças a existência de algum mal (você pode perdoar-me por ofendê-lo,
e tem-se de ter coragem para enfrentar e combater abusos de poder, por
exemplo). Ora, um ser, mesmo se for onipotente, não pode criar uma a virtude
como o perdão sem permitir o mal, caso uma condição necessária para o perdão for
algum mal como uma ofensa. Vale lembrar que a onipotência não significa fazer
tudo o que se quer, mas fazer tudo o que for logicamente possível. Assim, se o mal é a condição
necessária de algum bem como o perdão, não é logicamente possível haver o
perdão sem o mal, e Deus, portanto, não poderia criar o primeiro sem também
permitir o segundo. A conclusão é a mesma que aquela do parágrafo anterior: Deus
pode permitir o mal, desde que esse mal propicie algum bem maior e duradouro.
Um segundo candidato ao posto de premissa adicional no argumento lógico do
mal então seria: (14) um ser onisciente,
onipotente e perfeitamente bom, se existir, não permite a ocorrência do mal que
não seja justificado pela obtenção algum bem maior, mais importante e duradouro.
Mas essa proposição permite gerar a contradição que buscamos? Tudo indica que
não. De acordo com (14), Deus não permitiria o mal não justificado pela
obtenção algum bem maior e mais duradouro. Vamos chamá-lo de mal*. Ora, de (1) Deus existe e é onipotente, onisciente e
totalmente bom e (14) um ser
onisciente, onipotente e perfeitamente bom, se existir, não permite a
ocorrência do mal* derivamos (15) o
mal* não existe. Ora, não chegamos a uma contradição porque (2) afirma que
há o mal, sem nenhuma qualificação, e, portanto, que (16) o mal existe e o mal* não
existe é uma proposição perfeitamente aceitável que não envolve contradição,
porque ela diz que o mal que há no mundo é o mal que Deus está justificado em
permitir e não o mal*.
O proponente do argumento lógico do mal está agora em maus lençóis. O seu
argumento não é tão eficaz quanto a princípio poderia imaginar, pelo menos não até
que apresente a premissa ausente, i.e., aquela proposição que juntamente com
(1) acarrete a negação e (2), formando então um conjunto inconsistente. Dadas
as observações que fizemos até agora, a sua tarefa não será das mais fáceis. E
como se isso não bastasse, há ainda outro obstáculo que o proponente do
argumento lógico do mal deve superar, a saber, a chamada “defesa pelo
livre-arbítrio”. Veremos que a defesa joga a força do argumento lógico do mal
contra ele mesmo: o argumento quer estabelecer a inconsistência das crenças
teístas; se mostrarmos, pois, que essas crenças são consistentes, por mais
implausíveis que elas sejam, teremos respondido ao argumento!
A defesa pelo livre-arbítrio
Mesmo fazendo parte de uma tradição de pensamento que procura estabelecer
as razões para Deus permitir o mal, conhecida como teodiceia, os proponentes da
defesa pelo livre-arbítrio não se preocupam em mostrar a verdadeira razão para
Deus permitir o mal, não se veem obrigados a defender a defesa contra as críticas
sobre a plausibilidade das afirmações que fazem e nem mesmo se sentem
comprometidos a acreditar nessas afirmações. Para eles basta mostrar que o
teísmo é coerente.
A defesa pelo livre-arbítrio foi bem elaborada e proposta como solução para
o problema lógico do mal pelo filósofo norte-americano Alvin Plantinga. A sua
estratégia argumentativa é relativamente simples. Uma defesa pelo
livre-arbítrio precisa estabelecer contra o argumento lógico do mal que assumir
ao mesmo tempo (1) Deus existe e é
onipotente, onisciente e perfeitamente bom, e (2) o mal existe, não envolve uma contradição. Para tanto, sugere
Plantinga, basta estabelecermos uma afirmação p que juntamente com (1) acarrete
(2). Assim, se todo esse conjunto {p, (1), (2)} for consistente (na verdade,
ele tem de ser consistente se p e (1) efetivamente acarretarem (2)), (1) não é incompatível
com (2).
Tal como Plantinga a concebe, a defesa tem duas partes. Na primeira,
procura-se estabelecer que é possível que Deus não possa criar qualquer mundo
possível que queira. Na segunda, que é possível que Deus não possa criar um
mundo no qual as criaturas tenham a liberdade e não haja o mal. Essa defesa de
Plantinga é extremamente técnica e difícil, mas vejamos os seus pontos
principais, mesmo que superficialmente.
Em relação à pergunta se Deus pode criar qualquer mundo que queira, e,
sendo perfeitamente bom e onipotente, deva criar o melhor mundo possível,
Plantinga responde assertoricamente: Deus não pode criar qualquer mundo.
Considere duas “condicionais contrafactuais”, i.e., proposições no modo
subjuntivo com a forma se p, então q,
nas quais a antecedente, p,
sabidamente é falsa: (17) se Hitler fosse
assinado em 1933, não haveria o Holocausto e (18) se Hitler fosse assinado em 1933, haveria ainda o Holocausto. Se
assumirmos que (17) é verdadeira, i.e., que as coisas realmente se passaram
assim, que Hitler foi assassinado e não houve o Holocausto, Deus não poderia efetivar
o mundo no qual (18) fosse verdadeira. E vice-versa. A conclusão do raciocínio
é que Deus não pode efetivar todos os mundos que queira: ele pode efetivar ou (17)
ou (18), mas não ambos.
Isso mostra que Deus não pode efetivar qualquer mundo que queira. Mas o que
se tem de mostrar agora é que nenhum mundo é tal que Deus poderia tê-lo
efetivado e ele não contém só bens morais e nenhum mal moral. Plantinga
introduz aqui a sua hipótese crucial da depravação transmundana. Vejamos agora como
o seu argumento funciona com a introdução dessa hipótese.
Notemos primeiramente que uma pessoa P é livre se, e somente se,
encontrando-se em uma situação S ela pode fazer tanto A quanto abster-se de
fazer A (podemos dizer que S envolve toda a história do mundo até aquele
momento no qual P delibera sobre o que irá fazer, que Plantinga chama de
“segmento máximo de mundo”). Suponhamos agora que A seja uma ação má como
“aceitar propina para liberar verbas para a construção de escolas e hospitais”
e a sua contrária seja a ação boa de não aceitar propinas. Já vimos que se Deus
torna efetivo um mundo no qual P, estando em S, fizesse A, i.e., aceitasse
propina, ele não poderia efetivar um mundo no qual P não aceitasse propina. E
deve-se considerar também que Deus não poderia efetivar um mundo no qual ele garantisse
que P sempre agisse bem, pelo menos não se P for livre nesse mundo.
Plantinga então introduz aqui a sua hipótese da depravação transmundana,
definida assim:
Uma pessoa P sofre de depravação
transmundana se, e somente se, o seguinte acontece: para cada mundo M tal que P
seja de modo significativo livre em M e P faz somente o que for correto em M,
há uma ação A e um segmento máximo de mundo S* tal que
(1)
S* inclui A sendo moralmente significativo para P
(2)
S inclui P sendo livre em relação a A
(3)
S é incluído em M e não inclui P praticando ou
abstendo-se de praticar A
(4)
Se S* fosse efetivo, P cometeria erros quanto a A.
Ele sugere que se uma pessoa P sofre de depravação transmundana, Deus não
pode efetivar um mundo no qual P seja livre e não incorra no mal. E generaliza:
é possível que todos nós soframos de
depravação transmundana. Sendo assim, Deus não pode criar um mundo no qual
há liberdade mas não há o mal. Aqui não importa se é verdade ou não que
soframos de depravação transmundana. Para Plantinga, a mera possibilidade permite
ao teísta construir a prova da consistência que ele desejava: se a liberdade é
um bem e Deus não pode criar um mundo no qual haja liberdade mas não o mal - dada
a depravação transmundana -, visto que Deus cria um mundo no qual há liberdade,
então, podemos concluir, haverá o mal. Q.E.D.
O problema indiciário
O problema indiciário diz respeito à razoabilidade da crença teísta: embora
não possamos dizer que a crença teísta foi provada como sendo falsa, a existência
do mal nos dá ainda uma base racional para julgarmos que ela é uma crença
falsa. O caso é similar àquele no qual o detetive encontra algumas pistas de
que a assassina de um rico empresário é a sua esposa; essas pistas são indícios
a favor da hipótese de que a esposa é a culpada, mas não estabelecem isso de
forma definitiva, pois, afinal, tudo poderia não passar de uma trama dos seus
concorrentes de negócio.
Contudo, onde no argumento indiciário do mal entram esses indícios?
Considere uma versão do argumento do mal:
P1. Há males sem sentido
P2. Se Deus existe, não há males sem sentido
∴ Deus não
existe.
Dada as características do Deus teísta, a premissa P2 tem de ser admitida
tanto pelo teísta quanto pelo ateu: ser
onipotente, onisciente e totalmente bom são propriedades
essenciais de Deus, ficando, pois, excluído a
priori que ele pratique ou não impeça a ocorrência de males, exceto se
esses males forem justificados. Se há o apelo a indícios, esse apelo diz
respeito a P1.
Para apoiar P1, um dos principais proponentes do argumento indiciário do
mal, o filósofo da religião norte-americano W. Rowe, oferece um exemplo
concreto: há um incêndio em alguma floresta distante, um cervo é apanhado pelo
fogo, sofre intensamente por causa das queimaduras e esse sofrimento não tem propósito
nenhum (ou melhor, como diz Rowe, parece
que o sofrimento do cervo não tem propósito nenhum). A ocorrência de males
assim, que podemos chamar de “males maturais”, em oposição aos “males morais”
causados pelos seres com livre-arbítrio, colocam um grave problema para o
teísta, mesmo para aqueles que aceitam que a defesa pelo livre-arbítrio foi bem
sucedida. Isso porque, afinal, qual seria a relação dos males naturais, como o
mal sofrido pelo cervo na história de Rowe, com a liberdade humana?
Eis então o passo indiciário: não parece haver nenhuma justificativa em
permitir o sofrimento do cervo, ainda mais se for considerada a sua
intensidade; consequentemente, a probabilidade de que esse sofrimento seja sem
sentido é bastante alta. Assim, dada a alta probabilidade de que esse sofrimento
seja sem sentido, quer dizer, dada a alta probabilidade de P1, podemos
reformular o argumento anterior assim:
P1. Provavelmente, há
males sem sentido
P2. Se Deus existe, não há
males sem sentido
∴ Provavelmente, Deus não existe.
Mesmo que não estabeleça conclusivamente que Deus não existe, como indica a
ocorrência de “provavelmente” na conclusão do argumento, a incidência de certos
males no mundo constitui um forte indício contra a existência de Deus.
Soluções e críticas
Respostas ao problema indiciário
do mal.
Como vimos, a defesa pelo livre-arbítrio não serve como resposta ao
problema indiciário do mal, visto que ela estabelece apenas a consistência do
teísmo, e o proponente do argumento indiciário pode até admitir admitir essa
consistência, mas ainda insistir na pouca plausibilidade da doutrina teísta,
i.e., ele pode insistir que é provável que ela seja falsa. Para respondermos ao
problema colocado pelo argumento indiciário temos de argumentar a favor da
plausibilidade do teísmo considerando todo o mal que há no mundo; e podemos
fazer isso propondo uma razão positiva para Deus permitir o mal, i.e.,
desenvolvendo uma teodiceia. Contudo, antes de discutirmos um exemplo de
teodiceia, consideremos a seguir um outro tipo de resposta ao argumento
indiciário do mal conhecida como “teísmo cético”.
O teísmo cético
A base da resposta do teísmo cético aos argumentos contra a existência ou a
improvável existência de Deus é a afirmação de que em geral os argumentos
contra o teísmo pressupõem a verdade de algumas afirmações que são infundadas.
O argumento indiciário de Rowe, por exemplo, parte da premissa (P1) provavelmente, há males sem sentido, cuja
base, segundo os teístas céticos, não seria lá muito sólida. De facto, (P1)
seria fundada sobre a seguinte inferência:
parece
que não há razões para o sofrimento do cervo;
logo, é
provável que não haja razão.
A crítica cética começa então com o questionamento: essa inferência é
legítima, i.e., do facto de não parecer a alguém que p sempre se segue que
muito provavelmente não é o caso que p?
O cético responde ao seu questionamento afirmando que a inferência só é
legítima se algumas condições forem cumpridas. Na sua opinião, para passarmos
de não parece que p para muito provavelmente não é o caso que p temos
de ter alguma razão para acreditar que se fosse o caso que p, poderíamos chegar
a saber tal coisa. Na nossa condição epistêmica atual, por exemplo, seria legítimo
inferir de não parece que há seres
inteligentes em Marte para muito provavelmente
não há seres inteligentes em Marte porque, se eles existissem, poderíamos chegar
a saber disso: eles poderiam ter invadido a Terra como na novela de H. G. Wells
ou alguma sonda enviada a Marte poderia tê-los detectado por lá. Pelo
contrário, se houve um acidente nuclear nas proximidades da universidade e se um
de nós chegar na sala de aula de aula sem um contador Geiger, dar uma olhada em
volta, e não ver sinal de radiação, inferir de a sala não parece estar contaminada por radiação para provavelmente a sala não está contaminada
é bastante duvidoso: mesmo se ela estivesse contaminada, naquela condição
epistêmica não saberíamos disso.
Em relação ao problema do mal, o cético então argumenta o seguinte: se não
podemos sequer conceber o bem que justificaria o sofrimento como aquele do cervo
descrito na história de Rowe, é provável que, mesmo se esse bem existir, não poderíamos
ter conhecimento dele. Mas podemos conceber que há um bem que Deus tem em mira
ao permitir o mal. Isso é exatamente o que se espera se comparamos a nossa
situação epistêmica com a de Deus, uma vez que, sendo onisciente, ele tem
conhecimento de coisas que estão muito além da cognição e compreensão humanas
finitas. Se aqui o cético tem razão, o passo indiciário é então anulado, e a
premissa (P1) do argumento indiciário fica sem sustentação.
A resposta cética é bastante plausível, porém ela não é isenta de
problemas. A primeiro deles diz respeito às consequências indesejadas que a
resposta traz consigo. Para funcionar contra o argumento indiciário, a resposta
cética ressalta a incomensurabilidade do nosso intelecto com os desígnios
divinos, de tal modo que não podemos saber qual seria o bem associado à
ocorrência de males no nosso mundo, mas ao mesmo tempo essa incomensurabilidade
impede a compreensão dos fins da criação pressuposta em muitas das provas a
favor da existência de Deus, como os argumentos cosmológicos que apelam para
uma ordem e harmonia preestabelecida na natureza. O ceticismo também abalaria a
nossa confiança em Deus, visto que a confiança em alguém supõe que saibamos as
suas intenções, e as intenções de Deus estariam fora do nosso alcance
cognitivo.
Outro problema é que o mesmo raciocínio usado na defesa cética do teísmo
pode ser aplicado em outros casos com resultados absurdos. Por exemplo, sabemos
que todos os gatos são mamíferos. Porém suponha que alguém afirme que há gatos
ovíparos e que não podemos conhecê-los porque eles pertencem a uma dimensão que
ultrapassa o nosso conhecimento e compreensão. E só porque não vemos esses
gatos, não podemos inferir que eles não existam. Se aceitamos essa consideração
cética, segue-se não podemos saber que todos os gatos são mamíferos. Mas esse
resultado é absurdo, pois sabemos que todos os gatos são mamíferos. O que esse
argumento mostra é que ninguém pode vencer uma discussão postulando a
existência de coisas que ultrapassam o nosso conhecimento e estão além da nossa
compreensão. Assim, visto que o cético em sua defesa apela para a suposição de
que há coisas fora do alcance do nosso conhecimento e além da nossa compreensão,
e isso parece ser meramente estipulado, o argumento cético será inaceitável
também.
Frequentemente, o cético emprega na defesa do teísmo uma analogia interessante:
Deus seria como um bom pai, que permite o sofrimento aos seus filhos, mas
visando um bem maior, mesmo que os seus filhos não consigam ver que bem seria
esse ou mesmo que não possam entender por que razão haveriam de sofrer para
chegar a esse bem. Porém a analogia não é perfeita. Um bom pai que deixa o seu
filho no hospital para que ele se recupere, fica ao seu lado o tempo todo,
estende-lhe a mão e conversa com ele nos momentos mais difíceis, amparando-o e
explicando a razão dele estar no hospital. Deus também deveria se mostrar
quando há dúvida acerca da sua existência gerada pelo mal. Mas ele não faz isso,
preferindo ocultar-se. Por que ele faz isso? Uma saída para o cético é dizer
que essas razões estão fora do nosso alcance cognitivo; mas isso apenas aguça a
nossa percepção de que o cético quer vencer a discussão estipulando limites
para o nosso conhecimento e compreensão.
O teísmo cético também parece estar comprometido com uma determinada perspectiva
ética que para muitos seria pouco atrativa. Nessa perspectiva, uma ação seria
avaliada unicamente em função das consequências que possui. Assim, Deus estaria
justificado em permitir um mal a fim de permitir um bem maior. Contudo, há
certos males que nenhum bem futuro pode compensar, seja qual for a dimensão
desse bem. Se alguém pensa assim, i.e., se alguém pensa que nenhum bem pode
justificar e compensar a ocorrência de males horrendos como o Holocausto, então
deve recusar o ceticismo teísta como resposta ao problema indiciário.
Teodiceia da
edificação da alma
Uma teodiceia é uma tentativa de explicar que objetivos Deus poderia ter
para permitir o mal. Nesse sentido, o que se procura com as teodiceias é
estabelecer alguma razão para a negação da
premissa (P1) do argumento indiciário. Mais precisamente, o que se quer então é
estabelecer a seguinte condicional: se o bem visado no sofrimento for o bem x,
então Deus está justificado em permitir esse sofrimento. Que bem poderia ser
esse?
Há dois tipos de teodiceias. As teodiceias do primeiro tipo pertencem à uma
tradição que começa com Santo Agostinho e ressalta o livre-arbítrio como sendo
esse bem. As teodiceias do outro tipo são as chamadas “teodiceias irenaicas”,
desenvolvidas por diversos autores a partir do pensamento de Santo Ireneu, que,
assim como Santo Agostinho, é um dos patriarcas da Igreja Católica.
Contrariamente à tradição agostiniana, as teodiceias irenaicas ressaltam a
criação de seres humanos imaturos, que devem desenvolver as suas potenciais
cognitivas, morais e espirituais em um processo de edificação da pessoa humana
(da alma). O bem x que justificaria o sofrimento seria justamente as realização
cognitivas, morais e espirituais do indivíduo alcançadas nesse processo de
desenvolvimento.
Tradicionalmente, as teodiceias do livre-arbítrio estão associadas às
narrativas bíblicas da criação dos seres humanos perfeitos que viviam no paraíso,
mas que decaíram em função das más escolhas influenciadas pelo demônio. Essa narrativa
podia até bem ser aceita até no século XIX, porém hoje é irreconciliável com o
que sabemos acerca da origem da Terra e dos seres humanos. Isso torna as
teodiceias irenaicas mais aceitáveis, visto que não pressupõem a ênfase
agostiniana da perfeição da criação, seguida pelo exercício do livre-arbítrio e
pelo pecado, mas parte da criação de um ser que deve desenvolver as suas
potencialidades, compatível, pois, com a evolução da espécie humana.
Privilegiarei, portanto, esse último tipo de teodiceia na minha exposição do
problema do mal.
Para o teodicista dessa tradição irenaica, a criação do ser humano tem dois
estágios: a criação do homo sapiens
no processo evolucionário da espécie e uma espiritualização gradual de cada
pessoa como um filho de Deus. O segundo estágio não pode ser realizado sozinho
por Deus, pois a vida pessoal seria essencialmente livre e autorreguladora. A
criação requer aqui a cooperação humana em suas ações e reações no mundo no
qual Deus a criou.
Há nas teodiceia irenaicas a suposição de que ser bom superando tentações e
realizando boas escolhas é mais rico do que ser bom por inocência ou por
virtude natural. Essa teodiceia também supõe que há o desenvolvimento da pessoa
humana e a realização de certos fins. Contudo, isso não significa um processo
natural de evolução de toda a espécie humana. O progresso almejado é individual.
A realização dos propósitos de Deus com a edificação das almas não acarreta,
portanto, o melhoramento do mundo, mesmo que esse melhoramento seja resultado
contingente da acomodação social de bens gerados no desenvolvimento dos
indivíduos.
Mas como tem de ser um mundo no qual há edificação da pessoa humana? Muito
provavelmente, esse mundo deve ser como o nosso, repleto de adversidades,
sofrimentos, dores e mortes. Isso porque o mundo da teodiceia tem de ser um
mundo no qual os seus habitantes possam desenvolver as potencialidades
cognitivas a fim de se protegerem de adversidades e prosperarem, as
potencialidades morais a fim de trabalharem em grupo e desenvolverem as
virtudes como o esforço por causas comuns, não egoístas, e a compaixão com os seus
semelhantes, bem como as suas potencialidades espirituais a fim de reencontrar
e adorar a Deus.
Acrescente-se a isso que as qualidades morais não teriam função em um mundo
perfeito. Por certo, nele não haveria más ações. Mas se considerarmos que
algumas ações más, como, por exemplo, insultar alguém, são condições
necessárias para ações boas, como, por exemplo, perdoar, nesse mundo perfeito também
não haveria boas ações. Finalmente, nesse mundo perfeito, um mundo no qual
todas as ações fossem miraculosamente boas, e não teriam as consequências que
têm as nossas ações no nosso mundo, haveria a eliminação da responsabilidade
moral: ninguém precisaria deliberar sobre o que fazer, pois, afinal, tudo seria
bom.
Pode-se argumentar que Deus poderia criar um mundo no qual houvesse a oportunidade
para desenvolver essas potencialidades mas no qual o mal não fosse
indiscriminado, ou seja, apenas aquelas pessoas que agissem mau seriam privadas
de desfrutar um mundo prazeroso, e os justos não sofressem acidentes e não
fossem indiscriminadamente acometidos por doenças e dores insuportáveis. Esse
mundo, aparentemente, seria melhor do que o nosso mundo, onde os males ocorrem
indiscriminadamente, atingindo tanto os justo como os ímpios. O teodicista responde
a isso dizendo que um mundo assim não seria muito apropriado para a edificação
da pessoa humana, visto que nesses mundo as pessoas agiriam com justiça
simplesmente por medo, e não por dever. Além disso, o sofrimento tem de vir de
maneira aleatória para haver compaixão.
Mas Deus não poderia intervir secretamente para evitar pelo menos os males
excessivos? O teodicista pode responder a esse novo questionamento do seguinte
modo: se Deus eliminasse um mal que considerássemos excessivo, vamos chamá-lo
de mal x, outro mal y será considerado um mal excessivo; se agora ele
eliminasse o mal y, outro mal z seria considerado um mal excessivo, e assim por
diante, até que houvesse a eliminação completa do mal. Já vimos que para haver
desenvolvimento cognitivo, moral e religioso, tem de haver algum mal no mundo. Parece
agora que a quantidade desse mal que é permitida tem de ser aleatória, e não
podemos acusar ninguém de haver excesso de mal no mundo.
Essa resposta parece falaciosa: é como se alguém dissesse que não há uma
diferença entre as cores branca e preta porque podemos passar de uma para a
outra gradualmente acrescentando pequenas porções de preto ao branco. Claramente,
há uma distinção entre as cores branca e preta, assim como há diferença entre
um mal comum e quotidiano e um mal excessivo horrendo.
Em todo o caso, o teodicista não precisa desconsiderar a distinção entre
males quotidianos como ter o dedo espetado por um espinho ou ficar privado de
seu programa de televisão favorito e males excessivos e horrendos como os
campos de concentração nazistas, doenças como a AIDS, ou a fome e miséria nos
países africanos. E nem deve ser taxado de insensível. Um importante defensor
das teodiceia irenaicas, o filósofo e teólogo J. Hick, reconhece que há males excessivos
e horrendos. Mas acrescenta que não sabemos o que dizer em relação a esses
males, ressaltando que não se deve cobrar do teodicista uma explicação. Isso
porque não seria o caso de explicar esse mal apelando, por exemplo, para a
narrativa bíblica da queda ou para a postulação maniqueísta de forças destrutivas
como a pulsão de morte freudiana. Males excessivos e horrendos não têm
explicação. Evidentemente, isso não deveria comprometer as teodiceias irenaicas,
visto que o mistério da vida faz parte delas. O mal excessivo, horrendo e sem
propósito permanece e sempre permanecerá um verdadeiro mistério. Mas ele contribui
efetivamente para o mundo no qual há a edificação da pessoa humana (da alma).
As teodiceias são muito polémicas, e despertam discussões acaloradas.
Algumas críticas que se faz às teodiceias são falaciosas, motivadas apenas por
incompreensão e descaso, outras são mais adequadas e honestas, demandando uma
resposta séria. Por exemplo, pode-se alegar que o teodicista desconsidera os
efeitos unicamente aniquiladores e não edificadores da personalidade humana de
grande parte dos males. Essa crítica me parece adequada e demandar uma resposta
séria do teodicista. Geralmente esses males aniquiladores são males horrendos,
e não vejo como apelar para o mistério da existência desses males resolve o
problema, uma vez que a probabilidade de haver esses males e um ser totalmente
bom existir tem de ser muito baixa. Uma resposta positiva tem de ser oferecida.
Em geral, as falácias cometidas pelos detratores das teodiceias são ataques
pessoais aos proponentes da teodiceias. O teodicista, por exemplo, é acusado
frequentemente de passividade frente à realidade social. Os críticos afirmam
que, mesmo se admitirmos que que o teodicista tem razão, ou seja, que as coisas
realmente são como ele descreve, disso não se segue que devemos aceitar essa
condição na qual estamos, vivendo em um mundo de sofrimento, e não protestar
com base em nosso senso moral. Nessa vertente, ele é acusado de conservadorismo
político: o teodicista esconderia a particularidade radical e dura do
sofrimento humano e estaria, por implicação, mediando uma prática política que
afasta o olhos das crueldades que existem no mundo. Como também é acusado de
cooperar diretamente para o mal: o teodicista avançaria uma doutrina ou
perspectiva teórica na qual seria endossado o tratamento de pessoas como meros
meios para fins maiores. E de maneira mais genérica, costuma-se atacar o
teodicista afirmando que a sua abordagem desinteressada do problema do mal
apenas legitimaria a realidade na qual o mal terrível e as suas vítimas
padecem. Finalmente, ainda há os que consideram o teodicista insensível por
tratar aquele que sofre apenas como um meio para a realização de um plano
divino, usualmente um fim que o próprio sofredor não escolheu. Tudo isso é dito
de maneira genérica e indiscriminada sobre as teodiceias e os seus proponente
(cf. Trakakis, 2008), mesmo que uma teodiceia como a que discutimos, suficientemente
conhecida pelos filósofos da religião contemporâneos, explicitamente diga o
contrário.
Pode-se alegar também que as teodiceias pressupõem uma compreensão
meramente instrumental das ações humanas, pois ao aceitar uma teodiceia como a
teodiceia da edificação da alma alguém pode agir bem não por dever, mas
buscando egoisticamente o título de “filho de Deus”. De modo similar, pode-se
sugerir que a teodiceia irenaica falha e não leva ao desenvolvimento
principalmente moral porque falta caráter à empreitada: todas as ações passariam
a ser feitas em função desse objetivo de formação de caráter, revelando, desse
modo, um caráter nada virtuoso. Para que essas críticas funcionem bem, tem-se
de mostrar que uma pessoa que aceita a teodiceia da edificação da alma tem,
necessariamente, de guiar as suas ações não por dever, mas por uma expectativa
egoísta qualquer. Contudo, isso parece bastante implausível.
O expediente de Moore
Além do teísmo cético e das teodiceias, há outro jeito de lidar com o
problema do mal. Trata-se de uma maneira indireta de lidar com o problema,
batizada por Rowe de “o expediente de Moore”, em homenagem ao filósofo
britânico com esse nome. Como funciona esse expediente? Moore argumentou contra
o cético que afirmava que não podemos saber que da existência de objetos assim:
P1m. Sei que este lápis existe.
P2m. Se os princípios dos céticos forem corretos, não
poderei saber da existência deste lápis.
∴m Não é o caso
que os princípios dos céticos (pelo menos um) são corretos.
O que ele faz é inverter o seguinte argumento cético:
P1c. Os princípios dos céticos
são corretos.
P2c. Se os princípios dos
céticos são corretos, não posso saber
que esse lápis existe.
∴c Não é o caso que eu sei que este lápis existe.
No argumento de Moore, a conclusão cética (∴c) é negada, e aparece então como premissa (P1m), (P2m) é
idêntico a (P2c), e a conclusão de Moore (∴m) é a negação da premissa cética (P1c). Naturalmente,
diz Moore, o problema é saber qual é a primeira premissa que é a correta: a de
Moore (P1m), que afirma que ele sabe da existência de um lápis, ou a dos
céticos (P1c), que afirma a correção dos seus princípios. Moore entende que a
sua é a correta, apostando que o grau de certeza em relação isto ser um lápis,
muito maior do que o grau de certeza em relação ao princípios céticos, é um
ótimo indicativo de que ele está com a razão.
Portanto, a estratégia geral do expediente de Moore é negar a conclusão do
argumento cético, colocá-la como premissa, e concluir pela falsidade dos
princípios céticos. O teísta do mesmo modo pode argumentar assim:
P1t. Provavelmente, Deus existe.
P2t. Se Deus existe, não há males sem sentido.
∴t Provavelmente, não há males sem sentido.
O teísta tem aqui de oferecer algum argumento a favor da plausibilidade das
premissas. Mas essa tarefa não é impossível. Poder-se-ia inclusive apelar para
a própria experiência religiosa a fim de sustentar a premissa (P1t) do
argumento. Mas do mesmo modo o ateu pode apelar para a experiências que tem
para a não existência de Deus, e é difícil aqui pesar os indícios de cada um a
fim da sua hipótese preferida (i.e., se (P1t) ou a premissa do argumento
indiciário do mal segundo a qual há males sem propósito).
A conclusão tem de ser que, mesmo que não adotemos a crença teísta, não
parece haver razão para acusar os teístas de serem irracionais, por manterem
crenças inconsistentes. O teísta pode estar errado. Mas ele também pode ter
razão para acreditar que está certo. E nas questões que discutimos, se você ainda
não tem uma opinião formada, e apenas tenha sido informado pelos argumentos que
apresentei, a melhor opção seria manter um agnosticismo cuidadoso, que se ocupa
tanto dos argumentos a favor como dos argumentos contra, pesando e avaliando as
opções. Talvez algum dia você possa escolher um dos lados da disputa.
Sinopse e decupagem do filme
Plano de aula
Avaliação